sábado, 16 de agosto de 2008

BOFF, Leonardo. Ecologia, mundialização e espiritualidade: a emergência de um novo paradigma. 2ª edição. São Paulo: Ática. 1996.

Ai de vós, donos o poder, que há mais de quinhentos anos sugais o sangue dos trabalhadores. Vós os reduzistes a combustível barato para vossas máquinas fabricarem riqueza injusta. 11

Ecologia é relação, inter-ação e ialogcação de todas as coisas existentes (viventes ou não) entre si e com tudo o que existe, real ou potencial. A ecologia não tem a ver apenas com a natureza (ecologia natural), mas principalmente com a sociedade e a cultura (ecologia humana, social, etc.). Numa visão ecológica, tudo o que existe coexiste. 15

Nada é supérfluo ou marginal. Tem futuro não simplesmente o maior e o mais forte, mas o que tiver mais capacidade de relação e disponibilidade de adaptação. 15

A ecologia não é um luxo dos ricos nem uma preocupação apenas dos grupos ambientalistas ou dos Verdes com seus respectivos partidos. A questão ecológica remete a um novo nível da consciência mundial: a importância da Terra como um todo, o bem comum como bem das pessoas, das sociedades e do conjunto dos seres da natureza, o risco apocalíptico que pesa sobre todo o criado. 15

Em nível humano, a ecologia exige um atitude básica: a de relacionar tudo pelos lados; com isso se superam os saberes estanques e se evitam os “cientistas idiotas” que só sabem acerca de seu campo específico de saber... 18

Numa palavra, poderíamos definir a ecologia como a ciência e a arte das relações e dos seres relacionados. 19

Para Haeckel, um século atrás, a ecologia constituía um ramo da biologia. Portanto, representa apenas um interesse científico regional. Para nós, hoje, significa um interesse global, uma questão de vida e morte da humanidade e de todo o sistema planetário. 19

Todos os seres da Terra estão ameaçados, a começar pelos pobres e marginalizados. E desta vez não haverá uma Arca de Noé que salve alguns e deixe perder os outros. 19

Os equívocos dos ricos é tradicional, pelo fato de pensar só em si mesmos e não manterem a perspectiva holística englobando a tudo e a todos. 21

A verdadeira concepção ecológica é sempre holística e supõe uma aliança de solidariedade para com a natureza. 21

A questão ecológica nos remete para um novo patamar da consciência mundial: a importância da Terra como um todo, o destino comum da natureza e do ser humano, a interdependência reinante entre todos, o risco apocalíptico que pesa sobre o criador. Os seres humanos podem ser homicidas e genocidas como a história tem mostrado, e podem também ser biocidas, ecocidas e geocidas. 22

E a maioria os brasileiros está hoje em piores condições do que antes do começo do desmatamento, com a desvantagem de ter perdido as florestas. 23

A população mundial está num crescendo assustador. Em 1950 éramos 2,5 bilhões. Em 1975 já éramos 4 bilhões. Em 1989, chegamos a 5,2 bilhões. No ano 2000 seremos 6,4 bilhões. A humanidade precisou de 10 mil gerações para chegar aos 2 bilhões de habitantes. Em seguida apenas uma só geração para passar dos 2 bilhões para 5,5 bilhões. 24

O argumento não é difícil: ou nos salvamos todo dentro de um sistema de convivência solidário e participativo na nave-Terra, e para isso se impõem transformações fundamentais, ou pela indignação e pelos levantes podemos fazer explodir a nave e assim nos precipitar todos no abismo. Pois é esta consciência que está crescente mais e mais no mundo. 25

Para a modernidade, seja socialista, seja liberal-burguesa, a economia é a ciência do crescimento ilimitado ou, dito mais tecnicamente, da ilimitada expansão das forças produtivas. No final de cada ano, o país deve mostrar que cresceu mais do que no ano anterior. Desse imparativo nasceu o mito do desenvolvimento ilimitado, que denomina como um pesadelo todas as sociedades, já no mínimo quinhentos anos. 26

Tanto maior será o desenvolvimento, quanto mais minimizarmos os investimentos e maximizamos os benefícios. 26

O modelo do crescimento ilimitado vem habitado por um demônio: ele se constrói sobre a exploração das classes trabalhadoras, sobre o subdesenvolvimento das nações dependentes e sobre depredação da natureza. O resultado final é este: o desenvolvimento social. Ao contrário, ele é feito à custa do desenvolvimento social. 27

A classe dominante não impõe limites aos seus desejos, impedindo que os outros satisfaçam até suas necessidades. A pobreza bem como a riqueza produzem desequilíbrios ecológicos. Os pobres depredam por necessidade deprendam a curto prazo o que poderia ser e significar sua subsistência a longo prazo... os ricos esbanjam recursos que vão fazer falta aos pobres de hoje e às gerações de amanhã. Bem dizia Mahatma Gandhi: “ a terra satisfaz as necessidades de todos, mas não a voracidade dos cosumistas”. 28

Fica-se ainda na metáfora dominante, presente nos documentos oficiais, do desenvolvimento sustentável (definido pela Comissão Brundtland da ONU em 1987 como “aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer as possibilidades de as gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades”). 28

O que, na verdade, está hoje em crise não e principalmente o modelo de desenvolvimento. Mas é a crise do modelo de sociedade imperante no mundo. É no interior da sociedade que se elabora o projeto do desenvolvimento. A sociedade decide acerca do desenvolvimento que ela quer para si. O projeto mesmo não subsiste por si mesmo. 30

Atualmente os danos são planetários, afetando o solo, o ar, as águas, o clima, a flora, a fauna e a qualidade global da vida humana. As 25 cidades com 8 e 12 milhões de habitantes formam verdadeiros purgatórios e até infernos ecológicos. 30

Somente assim a sociedade será plenamente humana. O ser humano necessita tanto de pão quanto de beleza. Deve realizar todo o possível e ainda um pouco do impossível, pois é chamado sempre a ultrapassar os limites e a transgredir as barreiras impostas. “Se não tentarmos o impossível, seremos condenados a afrontar o inconcebível”, diziam os estudantes em 1968. 33

A ética vai além da moral. Por ela expressamos o comportamento justo e a maneira correta de o ser humano se relacionar, consoante a dinâmica própria e intrínseca à natureza de cada coisa. 34

A nova ordem ética deve encontrar sua centralidade. Deve ser ecocêntrica, deve visar o equilíbrio da comunidade terrestre. 35

Para uma ética ecológica são importantes certas tradições culturais. O budismo e o hinduísmo, no Oriente, São Francisco de Assis, Schopenhauer, Albert Schweitzer e Chico Mendes, no Ocidente, desenvolveram uma ética da compaixão universal. 35

O ser humano vive eticamente quando renunciar estar sobre os outros para estar junto com os outros. 36

Como se depreende, pelo caminho de uma ética ecológica fundada no respeito à alteridade, na acolhida das diferenças, na solidariedade e na potencialização da singularidade, deixa-se para trás o paradigma utilitário dominante que tantas ameaças traz à vida e à paz entre os seres da natureza. 36

A ecologia da mente procura recuperar o núcleo valorativo-emocional do ser humano em face da natureza. Procura desenvolver a capacidade de convivência, de escuta da mensagem que todos os seres lançam por sua presença, por sua relação no todo ambiental, a potencialidade de encantamento com o universo em sua complexidade, majestade e grandeza. 39

Espiritualidade é aquela atitude que coloca a vida no centro, que defende e promove a vida, contra todos os mecanismos de morte, de diminuição ou estancamento. O oposto ao espírito neste sentido não é o corpo, mas a morte e tudo o que estiver ligado ao sistema da morte social e morte existencial (fracasso, humilhação, opressão). 40

O que deve ser mundializado atualmente é menos o capital, o mercado, a ciência e a técnica. O que deve ser mundializado, fundamentalmente, ser mais mundializado é a solidariedade para com todos os seres, a partir dos mais afetados, a valorização ardente da vida, em todas as suas formas, a participação como resposta ao chamado de cada ser humano e à dinâmica mesmo do universo, a veneração para com a natureza da qual somo parte, e parte responsável. 41

Degradação e morte pertencem a vida. A morte é uma invenção da vida. O ciclo propicia a continuidade da vida, não do indivíduo. A natureza não é biocêntrica mas ecocêntricas, pois ela visa o equilíbrio entre vida e morte numa perspectiva de manutenção do todo. 43

Darwin estabeleceu a struggle for life (a luta pela vida) como princípio de seleção natural. O mais forte sobrevive, portanto, triunfa o princípio da auto-afirmação. Agora se completa Darwin: o princípio responde pela sobrevivência é a integração, a cooperação, a troca, a simbiose. Não se deve acentuar apenas a diferença e identidade. Mas também a complementaridade e a solidariedade. 44

A ecologia, mais do que qualquer outra ciência nos coloca diante da natureza como uma totalidade orgânica, diferenciada e única. 47

Os cristãos não têm dificuldades em conceber a encarnação pela qual o Filho de Deus se faz homem e convive com o dramático destino humano. 51

A originalidade de São Franscisco reside no fato de ele haver conseguido uma síntese feliz entre a ecologia interior e a ecologia exterior, quer dizer, deu origem a uma fascinante mística cósmica. 53

Nunca se viu no Ocidente tanta suavidade e tanta ternura como forma de vida e maneira de integração como em São Francisco de Assis. 54

A Idade Moderna caracteriza-se pela centralidade da razão na compreensão e organização da vida e da sociedade humana. A ciência e a técnica constituem a expressão mais acabada da racionalidade. Elas são responsáveis pela emergência do maior mito da modernidade: o desenvolvimento ilimitado. 59

As armas nucleares, químicas e biológicas atualizaram-nos a eventualidade do apocalipse para toda a natureza. Da fascinação passou-se ao espanto e até pavor. 60

A religião não é o que o ser humano faz com sua solidão. Mas o que o ser humano faz com a presença daquilo que nos extasia, alarga nosso coração e que está aquém e além de toda razão. 61

As pessoas querem experimentar Deus. Estão fatigadas de ouvir catequeses, de escutar as autoridade religiosas falarem sobre Deus e dos teólogos atualizarem as doutrinas da tradição. 62

A volta do religioso e do místico pouco se faz pela mediação das religiões instituídas. Estas falam sobre Deus e suas maravilhas. 62

A experiência religiosa e mística tem uma característica de globalidade. Tem a ver com o todo da vida e da história e não apenas com um setor. Não cresce ou diminui na medida em que cresce ou diminui o processo de secularização. A experiência do divino é por isso globalizadora porque consegue discernir a presença de Deus tanto no espaço secular quanto no espaço do sagrado. 64

Quem são os professores desses movimentos religiosos? Nos países industrializados, são os grupos que padecem sob o vazio de sentido da cultura moderna, os insatisfeitos com as mensagens religiosas das instituições históricas. 68

No Terceiro Mundo, em sua grande maioria, são pessoas profundamente carentes no plano da subsistência. São os sobreviventes da grande tribulação social que está dizimando as massas. Essas pessoas são religiosas. Têm sede de Deus e fome e pão. As Igrejas históricas não sabem acolher suas demandas vitais. Elas se institucionalizaram, criaram seus corpos de doutrina dogmatizados, seus quadros de direção burocratizados. Dificilmente criam condições, em seus ambientes, para um encontro vivo com o Deus vivo. Mal acolhem os professantes que as procuram. 68

A questão principal reside nisso: até que ponto as Igrejas cristãs são capazes de apoiar os movimentos libertários dos pobres, que têm nos pobres mesmos o sujeito de sua própria libertação? A Igreja romano-católica, devido à sua inculturação latina, seu forte centralismo e piramidalização do poder, supera com dificuldade a perspectiva paternalista e assitencialista. Até hoje não é clara a posição do Vaticano concernente a essa questão. Apóia os pobres, desde que não assumam a via revolucionária, ou somente na medida em que a Igreja mesma seja a condutora do processo de libertação. Neste caso ou se fica numa perspectiva reducionista de uma libertação apenas religiosa e espiritual no sentido dualista da tradição greco-romana, ou se mantém no paternalismo tradicional da prática histórica da Igreja, que, na verdade, nunca resolveu o problema dos pobres. 71

Ciência e técnica são vistas como capital humano que veio sendo acumulado por todas as gerações. É essencialmente social. Por isso não pode ser monopolizada, com vem acontecendo, pelas nações industrializadas, para garantirem os níveis de acumulação e a hegemonia na condução dos destinos da história, com exigência de adesão e submetimento de nações e povos. Importa desenvolver um projeto ético de solidariedade internacional e de promoção e defesa da vida que possa limitar a voracidade da ciência e da técnica e garanta a sobrevivência do criado. 73

A ciência e a técnica, particularmente a pesquisa nuclear, a física de ponta, a cibernética e a biotecnologia podem interferir no código genético e nas transformações da natureza que se habilitam a resolver os graves problemas da infra-estrutura humana. 75-6

O ser humano não se sente humano sendo somente objeto da beneficência pública ou alheia; ele quer participar e ajudar a construir, como sujeito, uma história coletiva e pessoal. Importa, então, criar, mediante a ciência e a técnica, formas de participação humana em todos os níveis. Esse é o processo que humaniza. 76

As Igrejas foram cúmplices pela mentalidade que levou à atual crise mundial da biosfera. Elas não foram suficientemente críticas e não articularam, como contrapeso, sua própria bagagem teológica que permitia uma relação de respeito e veneração para com o criado. 77

A sociedade não é uma coisa, mas uma rede de relações entre as pessoas, suas funções, suas coisas e instituições. Destas relações emergem, impreterivelmente, questões de responsabilidade, vale dizer de respectividade, daquilo que diz respeito a uns e a outros. É daqui que surge a ética. 83

A ética se dá nas relações que o ser humano entretém as mais variadas direções. Além da responsabilidade, ela se preocupa também com o mundo das excelências; por isso o imperativo ético alcança para além de qualquer concretização factual; ele possui um nítido caráter utópico. As práticas são boas ou más na medida em que se aproximam ou se afastam do utópico. Então, ético-politicamente, importa indagar: entre as várias formas de governo é a melhor? 83

A primeira é a democracia direta. A própria sociedade organiza-se democraticamente na medida em que todos os cidadãos participam de modo direto da elaboração dos decisões. 84

A segunda é a democracia representativa. A democracia é uma forma de organizar o Estado como centro de decisão de sociedade. Os cidadãos elegem representantes, pelo voto, para que estes os representem nas diversas instâncias do poder. 84

A terceira é a democracia participativa ou social. Além dos representantes, a sociedade organiza-se de tal forma que outros corpos sociais participam das decisões, como os sindicatos, as associações de caráter nacional... 84-5

A quarta é a democracia como valor universal. Ela resulta do exercício bem articulado da democracia participativa. A democracia emerge aqui como um valor a ser vivido não somente na instância da política (como relação de poder), mas em todas as esferas humanas: na família, a relação mais igualitária entre marido, mulher e filhos; na escola, como comunidade de aprendizagem, ao superar a divisão entre educador e educando... 85

A democracia como valor universal remete para o valor singular de cada pessoa humana. Ela é sujeito com direitos inalienáveis. O cidadão pode contar com o respeito à sua subjetividade como pessoa, como sexo, como cultura e como ideologia ou religião. 85

A ecologia exige de nós, em primeiro lugar, a superação do antropocentrismo. Este se apresenta muito arraigado em nossa cultura ocidental. 86

A partir disso, a reflexão ecológica ajudou-nos a entender que o ser humano é parte da natureza e da biosfera. Ele não é o centro do universo. Ele está numa profunda comunhão com todos os seres. O que o caracteriza não é um privilégio biológico. É o fato de ser um ente moral. 87

Tudo o que existe e vive merece viver e existir. O fato de cada ser constituir-se em outro, diferente de mim, funda também uma exigência ética para mim. 88

Por fim, à luz do que refletimos faz-se urgente entender as exigências de uma ecologia social. A ecologia social estuda os sistemas históricos-sociais humanos em interação com os sistemas ambientais. A história humana é inseparável da história de seu meio ambiente, dos tipos de ralações que foram aí tecidas, num jogo dinâmico do mútuo envolvimento. 89

As gerações pósteras têm o direito de herdar uma Terra conservadora e uma biosfera sã. Os que vêm depois de nós, humanos e todos os seres da criação, têm um direito ao futuro. 89

Há uma exigência política de uma educação ecológica, para que os seres humanos aprendam a conviver com todos os seres, animados e inanimados, como cidadãos de uma mesma sociedade. É a democracia ecológico-social-cósmica. 91

Teologia da Libertação. É a teologia os oprimidos e marginalizados que já não aceitam mais viver na indignidade. Nasceu de uma experiência espiritual, testemunhada pelas Escrituras, segundo a qual se percebe o estreito vínculo existente entre Deus, o grito dos sofredores e a libertação. Deus é Deus da vida. Toma partido por aqueles que gritam por vida, pois estão sofrendo sob a opressão. Deixa sua transcendência e se imiscui na história para liberar. Esta experiência denuncia um pacto que se armou com aqueles setores das religiões, especialmente o cristianismo ocidental, que sustentam um vínculo estreito entre Deus, os poderosos e a obediência. Segundo tal pacto, o poder de Deus ser faz presente pelo poder dos poderosos. Estes pedem obediência submetimento. Tal processo produz morte e empobrecimento, porque os pobres continuam objeto da beneficência dos poderosos e não participantes da história comum. A teologia da libertação procura desenvolver a dimensão política da experiência que vê Deus ligado à causa dos pobres e da sua libertação. A opção da teologia da libertação não é pelo marxismo, mas pelos pobres. O marxismo ajudou a mostra que o pobre é na verdade um oprimido, quer dizer, alguém feito com violência pobre. Nem seu objetivo é o socialismo, mas a libertação integral das pessoas. O socialismo pode ser tão-somente um instrumento político para a libertação dos oprimidos, libertação que alcança muito além daquela prometida e realizada pelos socialismos históricos. A teologia da libertação mostra que Deus está do lado dos cativos do Egito, ontem e hoje, e contra o faraó de todos os tempos. E que os oprimidos devem se organizar para o êxodo deste tipo de sociedade, rumo a uma convivência de promissão que permita a via minimamente digna para todos e também para os demais seres da criação, considerados como sujeitos de direitos e novos cidadãos da comunidade ecológica. 93-4

O socialismo não fez a revolução da liberdade. Não atendeu à fome de beleza. 97

Triunfou o capitalismo com seu mercado? De modo algum. Trata-se de um sistema que nunca deu certo. Dentro do capitalismo não há salvação para os pobres, mesmo nos Estados Unidos, onde o número de pobres está crescendo. Para nós ele não é uma utopia, mas um castigo. Seria uma ilusão pensar que ele existe para todos. Ele existe para os capitalistas. Depois as sobras caem para os lázaros que jamais são comensais como os capitalistas. 97

Ele somente funciona nos países hoje já capitalistas e industrializados, mas com tipo de desenvolvimento acelerado e dilapidador da natureza que jamais poderá ser universalizado, caso não quisermos introduzir um holocausto coletivo. 98

A teologia da libertação nasceu de uma dupla experiência, uma política e outra teológica. Politicamente, percebeu que os pobres fundam um lugar social e epistemológico, quer dizer, sua causa, seus interesses objetivos, sua luta de resistência e de libertação, e seus sonhos permitem uma leitura singular e própria de história e da sociedade. Essa leitura é inicialmente denunciatória. Ela denuncia que a história atual é escrita pela mão branca e conta as glórias dos vencedores. Ela recalca a memória gritante dos vencidos. Ela não tem consciência das vítimas e por isso é cruel e sem misericórdia. Mas ela é também visionária. Sonha com transformação possíveis e com relações humanas nas quais o ser humano é amigo de outro ser humano, e não o seu carrasco. A prática social pode transformar o sonho em realidade em realidade histórica. 98

A América Latina é um continente marcado pelo cristianismo, imposto junto com a colonização. Exatamente porque é um continente penetrado de referências cristãs, ocorrem assassinatos de teólogos. O que se teme não é o marxismo. A sociedade e a própria Igreja conservadora têm medo é de Deus. Desse Deus que liberta, que legitima a luta dos oprimidos e dá coragem para o último sacrifício. Não aceitam que a opção pelos pobres, contra a sua pobreza, nasça do coração da fé cristã e da essência do próprio conceito bíblico de Deus. Gostariam que nascesse do marxismo e das ideologias. Esta é a incompreensão e calúnia que as autoridades de Roma propalam pelo mundo afora. Eles temem que um cristão diga: por causa de Deus da ternura dos pobres, por causa de Jesus Cristo, por causa do Evangelho e da fé dos pais tenho todas as razões para postular uma transformação da sociedade, na qual os próprios pobres sejam protagonistas. Pelo fato de seu ter feito esta mesma exigência às relações internas na Igreja romano-católica, que padecem e falta de liberdade, é que sofri um processo doutrinado em Roma e fui também punido. 100

O projeto ibérico, em 80 anos, de 1519 a 1955 reduziu a população do México de 25, 200 milhões de habitantes a 1,375 milhões. Foi o maior genocídio da história, na proporção de 25 por um. Escutemos o testemunho do profeta maia Chilam Balam, dos primeiros anos da evangelização: “Eles, os colonizadores, vieram nos ensinar e medo; vieram fazer as flores murchar; para que unicamente sua flor vivesse, destruíram todas as nossas flores”. 102

Quem são os portadores de uma nova esperança? Os pobres coletivos e conflitivos. Os pobres do mundo são condenados a ser historicamente o húmus de uma nova esperança. Eles não têm mérito nenhum nisso. É sua missão histórica, a ser realizada em nome de todos e em benefício da inteira humanidade. Pois eles têm condições de sonhar. O presente não lhes pertence. Seu passado é o passado de seus sonhadores, que eles tiveram de internalizar. Só lhes resta o futuro. 104

Seria insuportável para qualquer ética assistir ao agravamento do dualismo mundial: de um lado, uma crescente acumulação de meios de vida e de desfrute consumista ilimitado, e, de outro, a miséria e a desestruturação cada vez mais avassaladoras de dois terços da humanidade. 105

A construção da democracia de dá na família, na escola, na fábrica, nas associações de classes, nas igrejas, no Estado e na sociedade. É um projeto sempre aberto e inacabável. 107

A teologia da libertação, dentro da qual me inscrevo, procura dar a sua contribuição. Assumem solidariamente o lugar do pobre, denuncia com os pobres e perversidade da pobreza. A associação às lutas dos pobres contra a pobreza, não em direção à riqueza que também é iníqua, mas em direção à justiça. O sonho não reside nem em uma sociedade pobre nem em uma sociedade rica, mas uma sociedade fraterna, justa, solidária, democrática e sensível ao mistério que atravessa a existência humana e a totalidade da criação. Esse sonho pode ganhar um pouco de realidade. 108

Toda a atividade humana e o que ela produz se medem em valor monetário. Os objetivos viram sujeitos e os sujeitos objetivos. Quer dizer, atribuem-se aos objetos produzidos características do sujeito, com vida, força, poder, e ao sujeito características do objeto: seu trabalho vale caro, barato, etc. 112
O capitalismo não triunfou. Triunfou sim, a vontade de participar e de conviver democraticamente. Ninguém será tão inimigo de sua própria humanidade a ponto de aceitar como veredito final da história a condenação de sermos lobos e não amigos uns dos outros. 115

A cultura é um dado especificamente humano que pervarde todas as forças construtoras da vida social. Por uma cultura entendem-se as formas e as maneiras pelas quais os seres humanos organizam o que fazem, pensam e simbolizam, incluindo as significações que imprimem a toda a sua prática: também na economia e em todas as instâncias está presente a cultura. 117

A conscientização além de ser um processo pedagógico é um valor e um direito de todo ser humano. Mas como tal, possui uma forte dose de utopia nem sempre possível de ser traduzida na prática. 119

A responsabilidade cabe ao grupo dirigente de manter-se ligado às massas e de jamais perder o sentido ético do serviço desinteressado. 119

Hoje na América Latina, o problema mais desafiante não é constituído pelos pobres dentro do sistema imperante, mas pelos 30-40% dos excluídos e destituídos que compõem vasto lumpesianato. Economicamente são zeros pois sua produção e seu consumo são irrelevantes para a contabilidade nacional. 125

A afirmação do papa na Centesimus Annus de que para o Terceiro Mundo a alternativa ao capitalismo não deve ser buscada na linha do socialismo mas no próprio capitalismo corrigido aprofunda ainda mais a desesperança dos oprimidos. Com a bênção do papa, os capitalistas podem tranquilamente condenar os pobres do mundo a outros cem anos (centesimus annus) de suor e lágrimas. Nunca o magistério papal esteve tão longe da verdade e da com-paixão para com os condenados da Terra. 125

A teologia da libertação comunga com o projeto político de muitos grupos sociais que postulam uma sociedade centrada na dignidade da pessoa humana e na participação que, pelo trabalho, satisfaz as necessidades básicas de pão, teto, saúde, educação e lazer e abre os espaços de liberdade para a criatividade e construção coletiva da sociedade. 127

A questão não se traduz à garantia da sobrevivência, como se o ser humano fosse apenas um animal faminto, um ser de necessidades.... o ser humano concreto, como já dizia o poeta cubano Roberto Retamar, não tem apenas fome de pão, que pode ser saciável: tem também, porque é humano, fome de beleza que é, no limite, insaciável. 127

Em conclusão: a teologia da libertação procura criar clareza sobre o objeto societário. A partir dele, pensa o poder que se expressa pela ciência e pela tecnológica. 128

A teologia da libertação, para finalizar, vê a ciência, a técnica e o poder como partes do projeto de resgate, construção, consolidação e expansão de vida e da liberdade humanas, a partir daqueles que menos vida e liberdade gozam. Vida e liberdade constituem os bens maiores e mais desejáveis da existência, sem os quais continuamos a nos sentir escravos de necessidades e com os quais nos percebemos filhos e filhas da alegria. 130

As culturas-testemunho da América Latina (incas, maias, quíchuas, aimarás, tupi-guaranis e outras) foram violentamente submetidas e, em grande parte, destruídas. E graça de Deus que elas ainda persistiam até hoje para poder denunciar a dilaceração que padeceram e refazer as matrizes que, apesar da opressão, guardam. 132

Espiritualidade. Espírito em seu sentido originário não constitui uma parte do ser humano, em distinção do corpo. É uma expressão para designar a totalidade do ser humano enquanto energia, sentido e vitalidade. O oposto do espírito neste sentido não é, pois, o corpo, mas a morte. Espiritualidade significa viver segundo a dinâmica profunda da vida. 139

A história da América Latina e em grande parte escrita com lágrimas e sangue; as sepulturas de tantas vítimas continuam abertas pois nunca termina a opressão mas também não arrefecem a resistência e os intentos de libertação. 142

O socialismo nasceu de uma profunda indignação em face da miséria e de um ato de amor político e revolucionário pelos oprimidos das sociedades marcadas pela desigualdade social. Para outros é um humanismo radical e uma ética de compaixão e da solidariedade que motivam compromissos sérios em defesa de índios, negros, mulheres, aidéticos, hansenianos e outros penalizados pela sociedade dominante.143

Mistério, portanto, não constitui uma realidade que se opõe ao conhecimento. Pertence ao mistério ser conhecimento. Mas pertence também ao mistério continuar mistério no conhecimento. Aqui está o paradoxo da mistério. Ele não é o limite da razão. Ao contrário. É o ilimitado da razão. 145

Uma coisa é o real, outra coisa nossa representação dele. Esta fica sempre aquém e chega sempre depois do real. 147

A mística não é, pois, privilégio de alguns bem-aventurados. Mas é uma dimensão da vida humana, à qual todos têm acesso quando descem a um nível mais profundo de si mesmos, quando captam o outro lado das coisas e quando se sensibilizam diante da riqueza do outro e da generosidade, complexidade e harmonia do universo. Todos, pois, num certo nível, místicos. 148

A crise atual das Igrejas e das religiões históricas reside na ausência sofrida de uma experiência profunda de Deus. 149

Piedoso e servidor do Deus histórico é aquele que se compromete com a justiça, toma o partido do fraco e tem a coragem de denunciar a religião do puro louvor sem a mediação do amor ao próximo. 150

É a mística que nos faz antes aceitar uma derrota com honra do que buscar uma vitória com vergonha, porque fruto da traição aos valores éticos e resultado das manipulações e mentiras. 155

Não há militância sem paixão e mística, pouco importa a natureza de causa, seja religiosa, humanística ou política. 155

O ser humano prefere perder o pão a perder a liberdade. O pão comido na opressão tolerada é amargo e desonroso. 156

Em oposição à vida está a morte. Não em primeiro lugar a morte como fenômeno biológico de desintegração, mas como aquele modo de ser humano, centrado em si mesmo com exclusão dos outros, como inflação do eu que corta a comunicação com os demais e como espoliação da vida dos outros. 165

Se entendermos por religião o esforço de ligar e religar cada pessoa humana ao seu centro divino e sagrado, então todos somos religiosos. 167

Tudo o que o homem e a mulher fazem, fazem-nos enquanto mulher e homem. Portanto, o sexo não é algo que o ser humano tem, mas algo que ele é de forma própria e irredutível. 171

Deus só é plenamente Deus quando é o Deus dos excluídos. E ele nasce para nós e em todo momento quando, imitando Deus, incluímos em nossa vida e em nossas lutas a todos os excluídos. 180

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